A aprovação do PL 4.302, e sua transformação na Lei
13.429/2017, sancionada por Michel Temer, e publicada em edição extra, no fim
da sexta-feira, 31 de março, exatamente 47 anos depois do golpe de 1964, era o
que faltava para reconhecermos a ilegitimidade desse governo que assume o poder
através de um golpe e não faz outra coisa, do que gastar todas as suas energias
no desmanche do Estado Social. Pesquisa da Confederação Nacional da Indústria
(CNI), melhor representante do capital que Temer busca desesperadamente
agradar, revela que o percentual dos que avaliam o governo como ruim ou péssimo
subiu de 46% para 55%. Apenas 17% das pessoas entrevistadas confiam no governo,
e 20% aprova o que está sendo feito.
Considerando quem encomenda e divulga a pesquisa, não
precisa tanto para percebermos que a ilegitimidade do atual governo, para além
do seu vício de origem, já determina sua insustentabilidade. Por muito menos,
Dilma foi crucificada pela mídia que insistentemente divulgava seus índices de
aprovação e exortava a uma “solução final” para seu mandato. Dilma cometeu
muitos erros. O PT também. Se chegamos ao ponto onde estamos, especialmente no
que tange à reforma da previdência, é em larga medida porque esse partido não
teve competência, vontade ou condições de alterar a política de destruição das
garantias sociais iniciada por Fernando Henrique Cardoso.
Ocorre que o problema não é mais o PT. É hora de
reconhecermos que o golpe de 2016 não está trazendo efeitos positivos, sequer
sob a perspectiva do próprio capital. E que não é possível seguir compactuando
com um governo cuja única função tem sido atacar, impiedosamente, os direitos
sociais.
O PL 4302 é de 1998, foi aprovado pelo Senado em
2002, por uma composição diversa da atual. Tem, portanto, vício de origem. Seu
desengavetamento e sua aprovação a toque de caixa de seu em razão da
dificuldade que o governo vinha enfrentando para aprovar o PLC 30. Esse outro
projeto, de 2004, foi amplamente discutido em audiências públicas por todo o
país, e rejeitado pela maioria absoluta da população de que dele tomou
conhecimento. Foi incluído e retirado de pauta várias vezes. Para driblar a
resistência do Senado, o governo articulou a aprovação, diretamente pela
Câmara, do PL 4302. Um golpe, dentro do golpe.
Terceirização é rebaixamento das condições de
trabalho; é incentivo ao trabalho infantil ou em condições de escravidão. O
material empírico que demonstra isso renova-se a cada dia. Em fevereiro do ano
passado, a prestadora de serviços Higilimp desapareceu sem pagar salários, vale
refeição e vale transporte atrasados há meses. Em outubro, empregados
terceirizados que trabalham no município de Jequié, na Bahia, contratados
através da empresa Terceira Visão, protestaram contra o atraso de mais sete
meses no pagamento dos salários. Em Porto Alegre, mais da metade das demandas
trabalhistas envolve terceirização e na grande maioria delas a prestadora de
serviços já desapareceu ou comparece à audiência apenas para dizer que encerrou
suas atividades ou não tem patrimônio para adimplir seus débitos.
Os trabalhadores, desesperados, se veem diante de
grandes empresas, como instituições financeiras ou companhias telefônicas, que
se negam a realizar acordos ou efetuar pagamento espontâneo dos salários não
adimplidos, ao argumento de que não tem responsabilidade. Enquanto isso, essas
pessoas de carne e osso seguem sua vida na miséria, fazendo empréstimos nessas
mesmas instituições financeiras para as quais prestaram serviço, atrasando a
conta de telefone e sujeitando-se aos juros abusivos que daí decorrem; pedindo
dinheiro a amigos e parentes. Perdem seus empregos e nada recebem. Não recebem
o valor do trabalho que realizaram, mas também lhes é negada a própria condição
de trabalhador. A frase “eu nem sei se ele trabalhou ou não em favor da minha
empresa”, repetida por prepostos de tomadoras dos serviços de limpeza,
vigilância, TI, telemarketing, vendas, entregas, e tantas outras atividades,
releva a face mais cruel da terceirização. O terceirizado, embora muitas vezes
sequer conheça a sede da prestadora; embora tenha trabalhado, por meses ou
anos, dentro da sede de uma ou mais tomadoras, não tem sequer o direito ao
reconhecimento de que trabalhou, de que seu trabalho tornou possível aquele
empreendimento, de que foi ele, e mais ninguém, quem levantou pela manhã, tomou
um ou dois ônibus, colocou o uniforme e limpou, atendeu, vendeu, protegeu o
patrimônio daquela empresa.
Chancelar simbolicamente o rebaixamento das
condições de trabalho, de produção, de consumo e de convívio humano, através da
Lei 13.429 é negar o projeto de sociedade contido na Constituição. A lei
estimula a realização de contratos mais curtos, aumentando a rotatividade e,
portanto, o uso de benefícios sociais como o seguro desemprego. Os acidentes e
doenças do trabalho ocorrem com muito mais frequência entre os terceirizados,
trazendo consigo consequências sociais e previdenciárias graves. Essas
consequências, especialmente a redução da remuneração, tem efeitos diretos
sobre o mercado de trabalho, pois a circulação de riqueza depende da existência
de sujeitos capazes de consumir e, portanto, bem remunerados.
A lei abre as portas para a existência de empresas
sem empregados, pois permite que toda a força de trabalho necessária à
consecução do empreendimento seja contratada por intermédio de terceiros. Essa
distância (apenas formal) entre o empregado e o verdadeiro beneficiário da sua
força de trabalho, provoca invisibilidade, descomprometimento, e, como
consequência, a fragmentação da classe trabalhadora em prejuízo direto à
organização sindical.
O direito do trabalho e, portanto, as relações
trabalhistas, foram construídas no tempo pela organização e resistência.
Pulverizando os trabalhadores, atrelando cada setor da fábrica a uma empresa
prestadora diferente, por exemplo, o capital consegue aniquilar essa “sensação
de pertencimento” a uma mesma classe de trabalhadores, porque promove a
concorrência interna e, com isso, elimina a possibilidade de resistência
coletiva organizada. É preciso perceber que qualquer redução de direitos
sociais implica, em última análise, piora das condições sociais de vida de toda
a população, o que significa dar muitos passos atrás em relação ao projeto de
sociedade que instituímos com a Constituição de 1988, promover um retrocesso que
certamente terá custos históricos que hoje sequer conseguimos projetar
integralmente.
Quem perde são os trabalhadores, mas é também a
sociedade que, especialmente em caso de terceirização em favor de ente público,
acaba pagando a conta. Paga a conta com o aumento do número de benefícios
sociais e previdenciários, com a redução do consumo, com a piora na qualidade
dos produtos e serviços ofertados, e com a invisibilidade para a qual joga uma
parcela significativa da sua população. A lição de Saramago é mais atual do que
nunca: quando tratamos pessoas como animais, elas passam a guiar seus atos pelo
extinto de sobrevivência, pois nada mais lhes resta de humano a preservar.
A terceirização não gera empregos. Ao contrário,
pulveriza a classe trabalhadora, abre flancos para a defesa de “Pjotização”;
promove redução de salários e aumento do número de acidentes. Os contratos
temporários mais longos retiram do trabalhador a possibilidade de buscar novo
posto de trabalho com um mínimo de dignidade (pois suprimido o direito ao aviso
prévio). As pequenas e médias empresas não serão beneficiadas com a nova lei.
Terão ainda maior dificuldade em competir com grandes empresas, que farão da
terceirização (como já fazem) um modo de reduzir custos e promover uma concorrência
predatória. A irresponsabilidade de uma reforma trabalhista sem peias, como a
que está sendo promovida por Temer, tem efeitos que certamente serão sofridos
pelas gerações futuras, que encontrarão um “mercado de trabalho” precarizado.
Do mesmo modo, a reforma da previdência, cujo
objetivo real parece ser a abertura de um novo nicho econômico para as empresas
de previdência privada, é assustadoramente cruel com a classe trabalhadora.
Aliada aos contratos precários previstos nos projetos em tramitação no
Congresso, impedirão concretamente a obtenção da aposentadoria, a cumulação de
benefícios, a percepção de auxílio em razão de doença profissional. A reforma
acaba com a aposentadoria especial, atingindo especialmente os trabalhadores
rurais, os professores, os industriários, os profissionais da saúde. Essa
reforma, baseada em mentiras divulgadas por caras propagandas governamentais,
não considera o fato de que a Seguridade Social no país é tão superavitária,
que 30% dos recursos arrecadados são redirecionados para o pagamento de dívida
pública.
Temer não tem compromisso com os brasileiros e
brasileiras, nem legitimidade para exercer a presidência da República. É
preciso reconhecer seu intuito exclusivo de promover o desmanche das garantias
sociais tão duramente conquistadas e convocar imediatamente novas eleições.
Apenas assim retomaremos o curso da democracia que perdemos definitivamente com
o golpe de 2016.
FONTE: Conjur