Transformar o Brasil em um país desenvolvido exigirá mudanças em muitas
dimensões econômicas, sociais, políticas, entre outras, as quais exigirão um
longo processo de recuperação e ampliação da infraestrutura social e
produtiva
* por Clemente Ganz Lúcio e Clovis Scherer
A assinatura do Compromisso Nacional para o Aperfeiçoamento das Condições de
Trabalho na Indústria da Construção, em março passado, é um acontecimento de
grande importância para a história das relações de trabalho no Brasil. Isso
porque, por um lado, é uma resposta ambiciosa a um sério desafio associado aos
investimentos em infraestrutura, moradias e equipamentos esportivos: garantir
aos trabalhadores condições de trabalho decentes, oportunidades de
desenvolvimento pessoal e instrumentos de diálogo em torno de suas aspirações e
necessidades. Por outro lado, como resposta aos conflitos iniciados nos
canteiros das obras das Usinas de Jirau e Santo Antônio, desenvolveu-se a
organização de um espaço nacional de negociação com impacto em todo o território
brasileiro. Neste aspecto, foi inovador o espaço tripartite de negociação
envolvendo trabalhadores, empresários e governo, que transformou o enfrentamento
daqueles problemas no desenho de um acordo voluntário para mobilizar esses
mesmos atores, em contexto concreto, para elevar o patamar das relações de
trabalho no setor da construção.
Ao mesmo tempo, a maneira como o problema foi enfrentado permitiu ampliar o
foco ao identificar um padrão de causas presentes em outros conflitos existentes
no setor e, no debate próprio de negociações complexas, foram formulados
instrumentos que favorecem a transformação geral dessa situação.
O processo
Como já foi afirmado, o Compromisso não foi apenas uma reação e, muito menos,
uma resposta aos conflitos trabalhistas deflagrados nas usinas de Jirau e Santo
Antônio. A busca por um acordo nacional que estabelecesse condições mínimas de
trabalho, superando as tradicionais mazelas vivenciadas na indústria da
construção, já tinha sido iniciada há alguns anos na relação entre empresários e
trabalhadores. No entanto, aqueles conflitos, entre outros que a mídia torna
visível em várias obras e que se repetem em todo o território em inúmeros outros
canteiros, é o fato motivador que provocou a articulação da Mesa Nacional
Tripartite, chamada pelo governo federal. A mesa conseguiu reunir vários
ministérios (em especial, a Secretaria Geral da Presidência e o Ministério do
Trabalho e Emprego), organizações empresariais da construção, civil e pesada ou
industrial, as centrais sindicais e confederações nacionais de trabalhadores do
setor. A liderança do governo, através do ministro da Secretaria Geral, foi
eficaz na coordenação das negociações, mantendo a mesa operante e perseguindo os
objetivos inicialmente estabelecidos para ela. Este foi um fator decisivo para o
sucesso das negociações.
Já os empresários estiveram representados pelas organizações pelos segmentos
da indústria da construção civil e da construção pesada. Tal composição permitiu
incluir no Compromisso diretrizes voltadas para cada um destes dois segmentos,
permitindo a aplicação tanto nas obras de grande porte do PAC e de estádios da
Copa e das Olimpíadas quanto no Programa Minha Casa Minha Vida ou em outros
empreendimentos imobiliários ou obras urbanas. Não menos importante foi o apoio
e a adesão das grandes empresas do setor ao Compromisso.
Da parte dos trabalhadores, seis centrais sindicais (CUT, Força Sindical,
UGT, NCST, CTB e CGTB) se engajaram nas negociações, acompanhadas por cinco
confederações nacionais de trabalhadores da construção. Com isso, fez-se
representar no processo o conjunto dos sindicatos de trabalhadores, que
contribuiu com propostas para a mesa e acompanhou cada passo das
negociações.
A Mesa Nacional se organizou em reuniões com a presença dos ministros e
dirigentes das entidades dos empresários e dos trabalhadores. A partir de uma
agenda de questões a serem tratadas, acordada no início pela Mesa Nacional, os
trabalhos foram realizados em grupos formados por representantes das partes, que
tinham como tarefa elaborar as propostas a serem posteriormente levadas para a
Mesa Nacional. Os grupos de trabalho que se sucederam tiveram sempre a
participação tripartite de membros da Mesa Nacional, agregando, conforme o tema,
especialistas das partes para a contribuição específica. O método de trabalho
foi orientado pela análise do problema segundo o olhar de cada segmento, o
estado da arte da legislação ou das boas ou más práticas, que subsidiavam o
esforço coletivo para indicar os obstáculos, os impedimentos, os
posicionamentos, identificar e negociar qual o avanço poderia ocorrer no aspecto
específico. Cada parte realizou inúmeras reuniões com seus pares para debater as
propostas e construir o posicionamento. Idas e vindas, tensão e vazio, desânimo
e motivação estiveram presentes nesse processo de interação no qual os
entendimentos foram se acumulando para gerar, ao final, os termos que passaram a
compor o Compromisso Nacional.
O objeto negociado
As negociações trataram dos temas centrais em matéria de condições e relações
de trabalho na indústria da construção, iniciadas por um problema que é crítico
e urgente: acabar com a intermediação espúria da mão de obra, representada pelos
chamados “gatos”, que transformam o direito à informação e ao serviço de acesso
a um posto de trabalho em meio de ganho privado, com a exploração dos
trabalhadores, realizada com a negação a eles de uma enorme lista de direitos
humanos e trabalhistas. O Compromisso optou pela implementação de um sistema de
intermediação público – em especial, por meio do fortalecimento do Sine (Sistema
Nacional de Emprego, vinculado ao MTE) como meio de superação da presença do
“gato” neste processo. O trabalhador terá uma série de proteções ao longo do
recrutamento, da seleção e movimentação até o canteiro de obras e a efetiva
contratação. Cabe destacar, neste aspecto, a urgência do investimento no
fortalecimento do serviço público de intermediação operacionalidade do Sine-MTE,
parte do Sistema Público de Emprego, Trabalho e Renda.
O segundo desafio do setor é o de qualificar a mão de obra, o que se fará com
planos específicos de qualificação, executados também pelos vários atores, e
garantindo como conteúdo dos cursos, informações sobre direitos trabalhistas e
procedimentos relacionados à saúde e segurança no trabalho.
Os impactos das condições de trabalho e do ambiente onde se executa a
atividade laboral trazem graves consequências para as pessoas que atuam nos
canteiros de obra. Por isso, o terceiro tema negociado foi o da saúde e
segurança no trabalho. Destaca-se no Compromisso o reforço do papel das
Comissões Internas de Prevenção de Acidentes (Cipas) e, sobretudo, o trabalho
articulado entre várias delas. O avanço neste aspecto constituiu-se na formação
de um Comitê de Saúde por Obra, em especial nas grandes obras, onde várias
empresas atuam. Assim, além das Cipas, que cada empresa é obrigada a constituir
e manter, o que se busca é elaborar, no Comitê, Planos e Programas da Saúde e
Segurança que integrem as ações em todo o canteiro da obra e em todas as fases
da construção. Dessa maneira, busca-se também fazer com que os trabalhadores
terceirizados ou empregados de subempreiteiras tenham as mesmas proteções que os
operários das empresas contratantes.
Vencidos estes primeiros três temas, partiu-se para aquele que representou,
talvez, o maior avanço: o da representação dos trabalhadores nos locais de
trabalho. Há uma limitação da legislação brasileira que não prevê o direito de
organização no local de trabalho, bem como pouco se avançou nesse sentido na
prática nas relações de trabalho. Por isso, neste aspecto, o Compromisso deu um
grande passo, pois estabeleceu uma forma básica de representação que valoriza o
papel do Sindicato de base, viabilizou a existência de comissões de
representação dos operários de cada obra e de um mecanismo de diálogo entre
estes e os responsáveis pelas obras em cada local. Os representantes dos
trabalhadores também terão o emprego protegido para que possam, com
tranquilidade, exercer o papel de representação.
Resolvida esta questão chave, o acordo também tratou das condições de
trabalho nas obras, mas resguardando amplamente a prerrogativa das negociações
diretas entre as partes para tratar dos salários, da duração dos contratos, das
jornadas, de transporte e benefícios. Valorizou-se o respeito às convenções e
acordos como um princípio básico a ser seguido por toda a cadeia de contratação
no setor da construção.
O Compromisso não poderia deixar de tratar das relações entre os
empreendimentos e as comunidades onde eles se inserem, já que os temas
trabalhistas encontram-se extremamente imbricados nas condições de vida das
populações locais. Em relação a essa questão, o ponto central é o
estabelecimento e o fortalecimento do diálogo entre os atores sociais locais, em
torno dos impactos das obras e das medidas para enfrentá-los. Nesse aspecto, foi
destacado o protagonismo que deve ter o poder público ao induzir ou implantar
uma grande obra. O projeto de investimento deve ser construído com a
participação da comunidade envolvida, de maneira a incluir o desenvolvimento
local no entorno da obra, como componente do projeto. Também devem ser previstos
investimentos de infraestrutura social, antes, durante e depois da obra. Esta
diretriz esta em consonância com a perspectiva do investimento no
desenvolvimento local, de tal modo que a moradia, o transporte, a saúde, o
lazer, a educação e a cultura, entre outros serviços e bens públicos,
constituam-se em instrumentos de promoção do bem-estar e da qualidade de vida
naquela comunidade. O país é repleto de experiências que demonstram justamente o
contrário, nas quais o entorno das obras, as vilas ou cidades que daí se
constituem são ou se tornam bolsões de pobreza, desigualdades e péssimas
condições de vida.
A implementação
O Compromisso é de livre adesão e várias empresas imediatamente aderiram a
ele. O governo deverá adotar as medidas para que os termos do Acordo sejam
observados nas obras públicas que envolvam recursos da União. Isso garante
condições mais favoráveis à efetiva implementação do acordo. A Mesa Tripartite
foi instituída oficialmente e deverá animar e acompanhar a implementação do
Compromisso por meio de indicadores e avaliações periódicas. Além de atuar na
divulgação, adesão e negociação da incorporação desse novo parâmetro às relações
de trabalho no setor, a Mesa trabalha atualmente no detalhamento de algumas
regras ali definidas, com destaque para o Regimento Interno das Comissões por
Obra e nos mecanismos de gestão nacional do Compromisso.
O acompanhamento e o monitoramento da aplicação prática do compromisso irão
enriquecê-lo, bem como as dificuldades encontradas serão objeto de novas
negociações. O importante neste sentido é a boa vontade dos atores em recolher
dessa experiência as lições que podem melhorar o próprio acordo, ou seja, é
preciso investir na continuidade do processo iniciado.
A difusão do Compromisso pode também trazer benefícios mais amplos, se servir
como oportunidade de aprendizagem para que outros setores decidam construir
termos nacionais como este. O Compromisso Nacional é algo histórico,
especialmente porque foi construído em um segmento identificado com péssimas
condições de trabalho e baixa proteção social, além de refratário às boas
práticas de se avançar nas relações de trabalho. Pelo que se conseguiu, há um
exemplo a iluminar e animar outras iniciativas em setores semelhantes em termos
de condições e relações de trabalho, promovendo a produção econômica com
trabalho decente.
Agenda de futuro no setor da construção
Transformar o Brasil em um país desenvolvido exigirá mudanças em muitas
dimensões econômicas, sociais, políticas, entre outras, as quais exigirão um
longo processo de recuperação e ampliação da infraestrutura social e produtiva.
Portanto, muitas obras serão necessárias e há o desafio e a oportunidade de
realizá-las em condições adequadas em termos de relações de trabalho. Novos
temas deverão surgir ao longo do tempo.
Uma das questões que em breve deverá entrar na agenda das negociações é
aquela relacionada à inovação tecnológica no setor da construção. A análise
comparada internacional indica que o nosso setor caminha aceleradamente para
ampliar a tecnologia dos processos produtivos. Partimos do pressuposto de que o
investimento em tecnologia, que vem acompanhando a expansão do setor, é uma
oportunidade para dar mais qualidade aos postos de trabalho, eliminar o trabalho
penoso, fazer a máquina e a tecnologia atuarem no sentido de melhorar as
condições de trabalho no processo produtivo. Como isso se materializará? Ao
mesmo tempo, as empresas terão ganhos de produtividade e qualidade, cujo
impactos serão a queda na demanda por força de trabalho. Como tratar dessa
questão? O aumento da produtividade poderá ampliar o retorno econômico: como
será a partilha dos ganhos de produtividade em termos de salários e condições de
trabalho? Essas são algumas das questões que se colocarão em breve nas agendas
de negociação.
Considera-se que o processo desenvolvido pela Mesa Nacional da Construção
constitui-se em uma experiência em que, simultaneamente, construíram-se:
- o objeto – conteúdos a serem seguidos nas relações de trabalho;
- os instrumentos que favorecem e viabilizam essa construção – comissões e
comitês, entre outros;
- a experiência em si, que se constitui em um capital político para
referenciar outras iniciativas semelhantes em outros setores, transformando-se
ao final;
- a própria Mesa, em um instrumento permanente para coordenar os rumos do
Compromisso e investir no seu aperfeiçoamento.
Trata-se, portanto, de mais um caso exemplar em que o investimento político
dos atores envolvidos desenvolve processos inovadores que podem suscitar novas e
outras transformações. Um caso, portanto, que ajuda a resgatar dimensões do
sentido mais profundo da política na medida em que, diante da contradição dos
fatos e dos argumentos das partes envolvidas, as pessoas optam, diante do que
representam, pela construção do diálogo de outros e novos caminhos e objetivos.
A qualidade de um acordo não está somente no consenso ou convergência dos
termos, mas, também, ao explicitar o dissenso e aquilo que não se admite
negociar, no esforço por encontrar outros parâmetros e perspectivas que
possibilitem convergência, o que implica a mudança de posicionamento de todos ou
de alguma parte. A negociação pode ser – se assim for concebida – um campo no
qual o pensamento interage na luta entre o que é e o que pode ser e, a política,
a arte de fazer as escolhas nesse campo de interação. O futuro é, também neste
caso, um campo aberto para a construção de novas relações sociais, espera-se,
assentada nos fundamentos e princípios de trabalho decente.
* Clemente Ganz Lúcio e Clovis Scherer
Respectivamente, sociólogo, diretor técnico do DIEESE (Departamento
Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos) e membro do CDES
(Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social) e Economista e supervisor do
Escritório Regional do DIEESE no Distrito Federal.