Goiânia, fevereiro de 2013.
No 7° Encontro Nacional da Indústria, em dezembro do ano passado, a
Confederação Nacional da Indústria (CNI) apresentou um documento com 101
propostas para, segundo ela, “modernizar” as relações de trabalho no Brasil. O
empresariado, de forma sistemática, tem pautando o governo e, portanto, os
trabalhadores precisam ficar atentos. O artigo abaixo, do consultor jurídico da
Contee, José Geraldo de Santana Oliveira, mostra como as propostas da CNI
representam, na verdade, um ataque à Constituição, à CLT e aos direitos
trabalhistas.
O francês Françoise La
Rochefocouald, do século XVII, dizia que a hipocrisia é a homenagem que o vício
presta à virtude.
A vida moderna cuidou de
confirmar essa velha máxima, sobretudo nas relações de trabalho capitalistas. Os
capitalistas, na exploração dos trabalhadores, quando é possível, usam da
violência, privada e estatal, para defendê-la. A história das sociedades é rica
em fatos dessa natureza.
O Brasil não foge à regra. Basta
que se diga que o presidente Washington Luís dizia que a questão social é uma
questão de polícia. Assim, à base da aplicação da força, foram tratadas as
relações de trabalho, com brevíssimos intervalos, até a promulgação da
Constituição da República Federativa do Brasil (CR), em 1988.
Quando se esgota a capacidade de
uso do argumento da força, entra a hipocrisia, que seria a força do argumento
marcado pela falácia e por objetivos diametralmente opostos aos que são
divulgados.
Desde o advento da CR, não se tem
notícia de um só projeto de lei, de iniciativa dos empresários ou por eles
apoiados, que não vise à supressão de direitos fundamentais, tendo como fim
último a crescente e, ao que parece, infinita precarização das relações de
trabalho.
A última pérola dos empresários
são as 101 propostas de mudanças na legislação trabalhista, apresentadas pela
Confederação Nacional da Indústria (CNI), em dezembro de 2012, à presidente
Dilma e ao Congresso Nacional.
Segundo a CNI, esta legislação
contém, pelo menos, 101 irracionalidades que devam ser corrigidas, por meio das
mudanças por ela apontadas nas referidas 101 propostas, que, afirma,
modernizarão as relações de trabalho no Brasil.
No entanto, quem se der ao
trabalho de analisar tais propostas e, principalmente, compará-las com os
direitos sociais, assegurados pela CR, com os tratados internacionais, dos
quais o Brasil é parte, e com mais recente jurisprudência do Tribunal Superior
do Trabalho (TST), a não ser por má fé, forçosamente concluirá que primam pela
hipocrisia, pois, para a CNI, modernização das relações de trabalho é sinônimo
de supressão de direitos.
Os argumentos expendidos no
comentado documento são todos falaciosos, desprovidos de razoabilidade e
eivados de más intenções.
No afã de induzir os
trabalhadores e as suas entidades a erros, inverte a ordem do Estado
democrático de direito, de modo a transformar as cláusulas pétreas da CR, de
cunho social, em mero apêndice das relações de trabalho.
A primeira proposta, segundo a
sua autora, tem por finalidade a valorização e o fortalecimento da negociação
coletiva, com prevalência do que for negociado sobre o legislado.
Essa proposta, que é o carro
chefe das demais, de aparência singela, parafraseando o poeta alemão Bertolt
Brecht, pretende rasgar o capítulo dos direitos fundamentais sociais da CR, que
vai do Art. 6º ao 11.
Não restam dúvidas de que toda
entidade sindical tem na valorização e no fortalecimento da negociação coletiva
uma de suas metas a ser alcançada. Porém, com a ressalva de que esta negociação
represente mais do que o mínimo constitucionalmente assegurado, e não a sua
redução, como quer a CNI.
A negociação coletiva já é
reconhecida pela CR, em seu Art. 7º, inciso XXVI, mas para acrescer direitos
aos mínimos protetivos, e jamais para reduzi-los e suprimi-los, como almeja a
CNI. Para a CR, os direitos nela preconizados representam o piso, ficando o
teto a ser negociado. Para a CNI, a ordem deve ser invertida, ou seja, esses
direitos devem passar a representar o teto, passível de desabamento, por meio
de negociação coletiva.
Em uma palavra, pode-se dizer
que, para a CNI, negociação coletiva somente se reveste de uma finalidade:
flexibilizar direito. Haja hipocrisia.
A negociação coletiva e a
proteção dos direitos negociados, por meio de acordos e convenções coletivas,
ganharam substancial força com a mudança na jurisprudência do TST, que culminou
com a nova redação de sua Súmula 277, para garantir a ultratividade das normas,
que se constitui no segundo alvo da CNI, que defende, com ênfase, a sua
revogação.
Há de se ressaltar que a CNI não
se contenta com a indecorosa proposta de espezinhamento da legislação protetiva
do trabalho, hipocritamente chamado de fortalecimento da negociação coletiva.
Ela pretende também a anulação de todas as súmulas do TST que tenham esse
caráter, bem como o aniquilamento de sua jurisprudência, que ficaria impedida
de se firmar em benefício da valorização e do primado do trabalho, sendo-lhe
permitido, apenas, assentar as bases para o lucro fácil e máximo: sem limite e
sem amarras.
Importa dizer: essa deve ser a
“função social” das empresas, cabendo à legislação e ao Poder Judiciário criar
os meios e o modo de garanti-la. Ou, em outras palavras, a sociedade tem de
servir às empresas e não o contrário, como determinam os Arts. 1º, inciso IV,
170, caput e inciso III, e 193, da CR.
Um passeio pelas 101 propostas da
CNI permite ao passeante atento constatar que todo o Art. 7º da CR, todos os
Arts. da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que lhe dão suporte, e as
principais súmulas do TST, que, nitidamente, possuem relevância social, são
alvos de ataque cerrado da CNI: para ela, a guerra contra eles e elas tem de
ser sem fronteiras e sem tréguas.
Por isso, um possível êxito da
CNI, na sua cruzada para a supressão de direitos, deixaria a ditadura militar
envergonhada, pois nem mesmo ela ousou tanto em matéria de supressão de
direitos e de construção de relações de trabalho baseada na lei do mais forte.
O sociólogo português Boaventura
Souza Santos, em artigo publicado pelo jornal “Folha de S.Paulo”, edição de 30
de janeiro último, com o título “A democracia ante o abismo”, afirma que
Portugal caminha a passos largos para ser politicamente democrático e
socialmente fascista.
Essas sábias palavras poderão ser
emprestadas ao Brasil, caso as propostas da CNI venham a prosperar.
Além do Art. 7º, da CR, são
mirados pela CNI, com a pretensão de vê-los abatidos: o Art. 4º, da CLT,
Parágrafo único, que garante o FGTS ao trabalhador afastado, para cumprimento
de serviço militar; o 58, da CLT, que diz respeito à duração do trabalho, ao
excesso de jornada permitido, sem remuneração (dez minutos diários) e às horas
in itinere; o 59, § 2º, da CLT, que versa sobre a compensação de horas; o 67,
da CLT, que regulamenta o repouso semanal remunerado; o 68, da CLT, que
condiciona o trabalho aos domingos à autorização legal; o 70, da CLT, que veda
o trabalho em feriados; o 71,§ 3º, da CLT, que trata do intervalo intrajornada;
o 73, da CLT, que regulamenta o trabalho noturno, inclusive a duração da hora,
que é de 52 minutos e 30 segundos; o 193, da CLT, que trata de periculosidade;
o 244, da CLT, que regula o regime de sobreaviso; o 253, da CLT, que
regulamenta o trabalho em câmara fria; o 384, da CLT, que impõe o descanso de
15 minutos, em caso de prorrogação de jornada; o 443, da CLT, que proíbe o
contrato de trabalho, por prazo determinado, para a atividade fim; o 444, da
CLT, que declara nulos os atos que fraudarem a lei; o 445, da CLT, que limita o
contrato por prazo determinado, legal, a dois anos; o 484, da CLT, que versa
sobre rescisão por culpa recíproca; o 627, da CLT, que diz respeito à dupla
vista no processo de fiscalização.
São também alvos a serem
abatidos: o Art. 6º, da Lei N. 605, que versa sobre faltas justificadas; o 7º,
da Lei N. 605/49, que regula o repouso semanal remunerado; o 28, da Lei N.
8.212/91, que versa sobre a contribuição previdenciária patronal; o 9º, da Lei
N. 7.284/85, que assegura um salário ao trabalhador demitido no período de 30
dias que antecedem à data-base; o 9º, do Decreto N. 3.048/99, que determina a
incidência de contribuição previdenciária sobre aviso prévio indenizado; o 60, §
3º, da Lei N. 8.213/91, que dispõe sobre o pagamento dos 15 primeiros dias de
afastamento do segurado, para tratamento médico.
São, ainda, alvos: dispositivos
da Lei N. 7.347/1985, que versa sobre penalidade administrativa, no âmbito do
Ministério do Trabalho; a Lei N. 7.418/85, que regula o vale-transporte; a Lei
N. 8.078/90, no mesmo sentido da N. 7.347/85; a Lei N. 8.212/91, que
regulamenta o custeio da Previdência Social; a Lei N. 8.213/91, que diz
respeito aos benefícios da Previdência Social; a Lei N. 8.742/93, que versa
sobre o benefício da prestação continuada; a Lei N. 10.101/2000, que trata da
participação nos lucros das empresas; a Lei N. 10.593/2002, que estabelece as
competências do auditor fiscal; o Decreto N. 3048/99, que regulamenta a Lei N. 8.213/91.
Quanto às súmulas, são alvos da
CNI: a 60, que assegura a integração aos salários do adicional noturno, pago
com habitualidade; a 85, que exige autorização de convenção ou acordo coletivo,
para a compensação de horas; a 244, que trata da estabilidade à gestante, mesmo
que o seu contrato seja temporário; a 277, que garante a ultratividade das
normas coletivas; a 378, que dispõe sobre a estabilidade do trabalhador
acidentado, ainda que sob contrato por prazo determinado; a 429, que
regulamenta o tempo à disposição do empregador; a 437, que diz sobre o
intervalo intrajornada; a Orientação Jurisprudencial (OJ) 173, inciso II, que
estabelece restrições para o trabalho a céu aberto.
A desfaçatez da CNI chega ao
extremo de, na proposta N. 76, advogar a tese de que as revisões de
jurisprudências do TST não alcancem as situações pretéritas, pendentes de
julgamento, mas apenas as que vierem a se concretizar após a sua aprovação. Ou
seja, o que já aconteceu fica no buraco preto, sem passivo algum para as empresas.
Sem dúvida, um negócio altamente lucrativo. Isto é que hipocrisia.
O inesquecível presidente da Assembléia
Nacional Constituinte, deputado federal Ulisses Guimarães, ao promulgar a CR de
1988, aos 5 de outubro daquele ano, disse que a nova Constituição não ficaria
como obra inacabada e profanada, pois tinha cheiro de amanhã e não de mofo.
Pois bem. A CNI quer profanar a
CR e transformá-la em peça de museu. Parafraseando o referido deputado, pode-se
dizer que as propostas dessa confederação patronal têm cheiro de ontem e,
portanto, de mofo, senão de putrefação.
À luta contra elas, em defesa da
CR.
* José Geraldo de Santana
Oliveira é Consultor jurídico da Contee, da Fitrae-BC, da Fitrae- MT/MS, do
Sinpro Goiás, do Sintrae-MS, do Sintrae-MT e do Sinpro PE. OAB-GO 14.090
Vergonhosas essas propostas da CNI. O Brasil lutou muito pela CF de 1988, assim como a LOAS (1993) e muitíssimo mais pela CLT, sendo esta sancionada pelo Presidente Getúlio Vargas (que deve estar revirando em seu túmulo). Os direitos adquiridos pelo povo brasileiro são nossos e precisamos ser firmes quanto aos mesmos. Quanto à jurisprudência, ela não só pode, mas deve ser utilizada nos casos que ainda não foram julgados. Nós brasileiros, classe trabalhadora, precisamos unir nossas forças, pois ainda somos maioria e não podemos nos deixar sucumbir por esse capitalismo desmedido. O título do José Geraldo de Santana Oliveira: "As 101 Propostas da CNI – Muita Hipocrisia" foi muito oportuno, mas acrescentaria algo a mais: desfaçatez com pitada de fascismo.
ResponderExcluirUaaau!!! vc me surpreendeu com seus comentários, concordo em grau, número e genero. Forte abraço!
ResponderExcluir